domingo, 26 de março de 2017

Crônica:Tadeu Bittencourt e o naufrágio do barco Titânico



                                        Projeto-crônicas:
                          A ALEGRIA DAS RARAS AMIZADES
                                       Por Cesar Otacílio

Tadeu Bittencourt e o naufrágio do barco Titânico

                                Um artista aventureiro em ação

    Alfredo Tadeu Bittencourt, 1955-2016, artista plástico performático, em vida foi um dos homens com ideias mais sensatas de Blumenau, pelo menos assim o consideravam seus amigos. Já para outros, um pensador polêmico, certamente, somente para aqueles sem ideias próprias, senão, se deslumbrar com a cultura da dominação e das bobagens mostradas na televisão. 
  Tadeu, multi talentoso e dedicado à obra, conquistou respeito de pessoas de todas as classes sociais e profissionais. Aventureiro, seu ápice foi como marinheiro navegando pelos oceanos do mundo. Tinha muitas histórias para contar, adorava falar das viagens, países distantes, pessoas e paisagens que conheceu durante muitos anos engajado na marinha mercante. Falava melancolicamente dos dias tediosos enclausurados dentro de um enorme navio de ferro, das tempestades em alto mar quando ondas gigantescas castigavam o barco parecendo que o afundariam."O som do ferro gemendo, o rugido do mar, o silvo do vento, a escuridão da noite, o barco sendo açoitado impiedosamente, fazia marinheiro corajoso se borrar de medo", dizia, e ria, entre um cigarro e outro gole de cerveja. 
  Quando falava do mar, todos o ouviam. Viu homens chorando iguais crianças pedindo pelas mães, presenciou jovens rezando em voz alta se agarrando em crucifixos e santinhos de papel quando o navio adernava num mar violento parecendo que não resistiria as enormes ondas. Nessas horas, vagalhões gigantescos elevavam a embarcação a ponto de deixar o hélice no ar fazendo som como faca enorme cortando o vento e a água. Assobiava, assustava, gelava a espinha, balanço descompassado e revolto fazia enjoar marinheiros experientes:"Vamos afundar, gritavam os mais medrosos, repetidas vezes com choro nas vozes. Por vezes, durante vários dias tempestade mantinha-se, arrepiante, assustadora, aí, nessas horas, nada a fazer senão se recolher nas cabines e torcer para o navio resistir e ninguém morrer", completava Tadeu.

                                 Artista Lobo do Mar

    A carreira de artista plástico só assumiu integralmente depois de abandonar a vida de marinheiro. Mas, velho lobo do mar, jamais conseguiu ficar longe das aventuras marinhas. Assim, para manter vivo o costume de navegador, passou a contar histórias com temas do mar cheios de dramas, sonhos e poesias. Como artista plástico e agitador cultural, adorava criticar políticas sem fundamentos, combatia pessoas interesseiras e incompetentes invadindo a área artística, neste caso, a sua área de interesse. Nessas horas, parecia alguém com faca entre os dentes e mostrava, com isso, apurada observação das pessoas. Na verdade, com positivismo raro de se apreciar num ser humano, mesmo criticando tudo e todos, tinha ternura nos atos e transbordava alegria soltando contagiante rizada quando amigos encontrava.  
  Seu trabalho, carregado de crítica social, não possuía linha pictórica única, nem estilo com características pessoais. Polivalente, podia transbordar talento tanto na pintura sobre tela (pintado com pincéis ou qualquer outro material, como vassoura e folhas de plantas), ou tanto nos objetos e esculturas com estruturas diversas utilizando desde pirão a ferro, passando por arame, madeira, papel, canos plásticos, câmara de ar, cenografia de teatro, etc. 
  Uma curiosidade pouco conhecida sobre a sua linha de ação precisa ser revelada: Em 1995, quando a prefeitura de Blumenau implantava um raro projeto de incorporação de obras de arte com artistas locais nas praças da cidade (proposta defendida enfaticamente pelo poeta Lindolf Bell na sua, então, coluna de domingo no Jornal de Santa Catarina), convite estendido a todos os artistas, muitos aderiram a ideia e apresentaram projetos. Eu, na ocasião, apresentei proposta para criar o mural As Costureiras, obra que se encontra hoje na praça da esquina das ruas Santa Catarina com a Dois de Setembro no bairro Itoupava Norte. Tadeu, com sua costumeira ousadia, ou rebeldia, apresentou proposta com maquete para execução de uma enorme escultura, 15 metros de altura, 5 de largura, feita de arame e revestida de pirão. Isso mesmo, pirão! E, o valor? Tão alto e dadaísta quanto a obra. Durabilidade? Até chover, nem uma hora a mais. Algo surrealista ao extremo até para Duchamp e, claro, chocou todos dentro da prefeitura. O então prefeito Renato Vianna ficou incrédulo com o que ouvira, Tá de brincadeira, decerto pensou. De pirão? Se assustou. Uma escultura de pirão numa praça? Veio falar comigo sugerindo que eu, como amigo, convencesse Tadeu executar a obra com material durável, por exemplo, cimento armado. "Com pirão não vai dar" Falou-me com veemência, como se dissesse, fala à ele. Mas, "não tem jeito", fui logo dizendo-o, "quando ele tem uma ideia na cabeça, ninguém tira". Resultado, Tadeu não conseguiu aprovação do trabalho. 
  Depois, para ele, essa obra que nunca existiu, existia sim, insistia, e era motivo de muito orgulho. "Porque, afinal, é isso mesmo", dizia, "apenas uma proposta que, por ser apresentada a obra passa existir". No fim, poucos o entendiam e a dúvida persistia; como assim: obra que nunca existiu, existir? Perguntavam-o. Ele se divertia e explicava: "Qualquer obra de arte que ainda não existe fisicamente, se for pensada, falada, desenhada, ou apresentada como esboço para alguém, passa a existir nas concepções intelectuais e, a arte, é assim mesmo, existe até mesmo quando está invisível". Dizia, rindo. Aquela obra era apenas uma ideia e, a ideia, a obra. Quanto a prefeitura, mesmo à parte do debate artístico, fez história, "acabou contribuindo na realização de uma obra inexistente fisicamente, mas que existe espiritalmente". Gargalhava Tadeu. 
   Com sua desenvoltura criativa, destacou-se nos salões de arte contemporânea, principalmente em Santa Catarina onde é um artista com importantes premiações conquistadas. 
   Dos recursos financeiros dos anos viajando pelo mundo num navio mercante, dos prêmios em salões, das vendas de obras, conseguiu junto com a esposa, confeccionista de roupas, adquirir uma ampla propriedade, tendo, por fim, uma bela casa de alvenaria, um amplo ateliê e um pomar de frutas, até um cachorro, permitindo-se vida tranquila conforme os cabelos embranqueciam. 

                 Casa e ateliê perdidos numa mega enxurrada

    Tudo parecia seguir roteiro para uma velhice plena de um artista consagrado; isso até 2008, quando o Vale do Itajaí sofreu uma mega enxurrada, sendo, esta, considerada uma das maiores catástrofes da história de Santa Catarina. A região de Blumenau foi uma das mais castigadas, os bairros sofreram montanhas de lama e entulho pelas ruas com deslizamentos que destruiu centenas de casas, matando dezenas de pessoas (46 ao total). A mega enxurrada chocou o país e, Tadeu, chocou todos seus amigos, não por ter criado uma nova obra crítica e, sim, pelo que aconteceu à ele na catástrofe, sendo, lamentavelmente, uma das vítimas que perdeu tudo: terreno, casa, móveis, roupas, documentos, livros e obras. Dos seus bens, restou apenas o calção e a camiseta que usava. Homem forte, no momento do deslizamento conseguiu correr com a esposa e praticamente arrastar a sogra pelo braço, chegou mesmo a puxa-la do tsunami de lama. "Foi por pouco, quase ficamos enterrados", disse. Viu sua casa deslizar numa onda lamacenta para cima das outras moradias, contribuindo com a destruição de mais cinco casas na rua. O som da destruição misturado ao desespero das crianças, das mulheres se abraçando em comoção, dos homens se lamentando, o fez chorar. "Naquele momento tudo estava triste", disse. Depois, quando a terra parou de deslizar, só sobrou alguns caibros aparecendo acima do entulho enlameado e, o terreno, se transformou numa cratera gigantesca sendo isto a única marca do que restou da sua casa e do seu ateliê.
  Nos meses seguintes, incrivelmente depois de tamanha provação, Tadeu não se permitia demonstrar abalo, continuava sorridente com os amigos, parecia que nada havia acontecido e ninguém presenciou-o reclamando ou se lamentando da falta de sorte.
"A ficha ainda não caiu", dizia, na verdade estava mais preocupado com seus amigos, se alguém mais tinha perdido casa, ou pior, se algum conhecido havia se ferido na catástrofe. 
"Não Tadeu, só você perdeu casa"; falavam amigos, parecia nem ouvir e negava-se falar da casa perdida. Poucos dias após a catástrofe, veio me vistar; admirou-se com a quantidade de barro, areia e entulho abraçando as casas e transbordando nas ruas (que, parecendo palco de guerra, só voltaria ter carro circulando normalmente três meses depois). Em especial, chamou sua atenção a quantidade de enguias vistas nas poças de lama formadas entre os montes de entulho e barro; centenas delas, senão, milhares, todas trazidas e deixadas ali pelas águas do ribeirão. "Incrível, de onde vieram tantas?" Se perguntou. Falamos-nos daqueles dias cinzento-negros e de um fenômeno que dificilmente testemunharíamos outro igual. Falei do meu esforço para acalmar mãe e filha assustadas com a força da correnteza do rio parecendo mar. Citei o salvamento dos vizinhos em colchões infláveis de acampamento, do cachorro tirado da água pensando ser uma capivara, da quantidade de bujões de gaz, geladeiras, aspiradores, brinquedos, árvores destroçadas e, touceiras de bambus alinhadas em centenas de metros parecendo trens fantasmagóricos que vi passar, às centenas, no ribeirão transformado em rio caudaloso. Rimos orgulhosos dos panelões de sopas feito por todos, e para todos depois da tragédia, na rua em frente da casa. Falei ainda da minha recém-restaurada Vanguard (Standard 1951, comigo mais de 30 anos), linda igual quando saiu da fábrica sendo arrastada com todos seus niquelados e pintura caríssima para fora da garagem com a força da água de mais de dois metros de altura. "Uma loucura, obriguei-me pular na água e amarra-la com corda do jeito que deu, onde deu; um prejuízo enorme"; disse-lhe à Tadeu. Mas, ouvindo-o, tudo isto parecia de menor importância. Então, fomos para traz da minha casa olhar o, ainda, nervoso Ribeirão Garcia. Tadeu ficou assustadíssimo, não com a força da correnteza, mas, com a situação em que se encontrava a casa, próxima de começar a cair devido desbarrancamento no barranco do riacho se aproximando das fundações da construção. Alarmou-se, tudo estava mudado, tinha desaparecido a área de lazer, os pés de laranjas, jabuticabas, caquis, a parreira de uva, também a horta e, até, a casa da árvore, com a árvore, da minha filha Tarsila. Pior, o desbarrancamento não parava e a força podia ser vista naquele exato momento com o barranco caindo, 3 metros de altura, e estremecendo na água abaixo. Fatias enormes de terra tombavam de tempos em tempos, arrepiando, desesperando e, o rasgo, prosseguia firme em direção à casa. "A situação está preocupante", falei-lhe. "Se o desbarrancamento continuar, Blumenau terá dois artistas plásticos com suas casas perdidas". Disse-me ele, balançando a cabeça com aspecto de muita preocupação. 
 Tadeu, agora, alguém com experiência em tirar pessoas da lama, principalmente, alguém com experiência em perder casa numa catástrofe, podia aconselhar amigo numa situação parecida. Então, foi logo falando como se o problema fosse seu: "Precisamos fazer alguma coisa, como por exemplo, construir uma taipa de pedras, com cimento e ferros, entre o ribeirão e a casa". Disse-me com ar de quem sabia o que estava falando. Assim, combinamos: "Vai demorar, mas aproveitando as pedras no barranco do ribeirão, em poucas semanas estaremos com o serviço concluído e, pode acreditar, a casa não vai mais correr risco de cair". Falava, empolgado, com olhos brilhando parecendo lanternas. Dessa forma convincente, assim fizemos e, em pouco tempo, com a disposição de ambos o serviço podia ser visto com surgimento de uma taipa de bom tamanho, com mais ou menos um metro e meio de altura, cinco de comprimento, um e vinte de largura. Para nós, artistas, entre uma cerveja e outra, a coisa virou obra de arte aumentando bastante a empolgação. Logo, a principal dificuldade era conseguir material em quantidade suficiente para o serviço prosseguir. Não demorou, isso se tornou preocupante após todas as pedras visíveis num raio de duzentos metros terem sido recolhidas. "O que vamos fazer? Precisamos de muitas mais, onde conseguiremos tantas pedras?" Falávamos; sentados, em descanso tomando cervejas. Foi quando Tadeu pensou e falou: "Olha só, no outro lado do ribeirão tem muitas pedras, temos que pensar num meio de traze-las transpassando a correnteza, vamos encontrar alguém que tenha uma batera, canoa, e pedir emprestada, ou alugar, aí conseguiremos trazer muitas pedras", completou. 

                    A construção e o naufrágio do barco Titânico

   Nos dias seguintes daquele novembro cinzento-negro de 2008, o pensamento era um só, conseguir uma batera, uma canoa, ou qualquer outro meio possível para transportar pedras do lado oposto do Ribeirão Garcia, que no caso, continuava com muita correnteza. Consultamos amigos na esperança de conseguir uma batera, ou  até caiaque, câmara de ar de pneu de trator ou de caminhão para executar o serviço, mas, com os dias passando e nada surgindo, ficou claro que seria algo muito difícil de providenciar.
"Então, não resta mais nada a fazer, senão, construirmos nosso próprio barco". sugeriu Tadeu, convicto. E, imediatamente, no chão de terra, fez alguns desenhos, digo, plantas elaboradas com chassi, costado e calado de um objeto curioso, coisa estranha, treco, troço, negócio, algo qualquer que se poderia chamar de tudo, menos de barco. Traçou linhas, indicou medidas, 12 por 6 pés de arqueação, sendo o problema de navegabilidade uma das suas preocupações principais. Para resolver a questão de maneira econômica, a utilização de bombonas recicláveis dos postos de combustíveis parecia ideia sensata, "basta utiliza-las como sustentação debaixo de uma estrutura tipo jangada". Falou, com seus cabelos arrepiados lembrando inventor maluco dos filmes preto e branco. Assim foi feito, com dezenas de bombonas amarradas com arames reforçados num chassi de madeira, criou, criamos, um colchão sob tábuas parecendo perfeito para transportar pedras. Ficou feio e pesado de dar medo. Fomos em frente e logo estávamos prontos para colocar o barco(?) à singrar primeira viagem. Só faltava batismo e, seguindo as tradições dos homens do mar, Tadeu o batizou de: Titânico, nome que escolhemos para a ocasião: "Eu te batizo, Titânico", disse, jogando nele um pouco de cerveja. Por fim faltava o teste de navegabilidade, Tadeu, na condição de velho lobo do mar, tomou a dianteira, subiu no convés do sinistro barco(?) Titânico, pediu para soltar as amarras e com uma vara feito remo encarou de frente a força do Ribeirão Garcia. Mas, o riacho demonstrando reprovar tamanha aberração flutuante(?) se agigantou para cima de Titânico fazendo-o adernar assustadoramente e emborcando-o de imediato com a proa (ou popa, não se sabia ao certo), na água agitada. Nesse momento, Tadeu, o capitão, timoneiro destemido, percebeu furos nas bombonas que as estavam enchendo rapidamente de água, piorando uma situação já bastante complicada. A coisa ficou preta, Titânico, com sua proa e popa quadradas, uma falha grave de engenharia, criou enorme resistência na correnteza deixando entender estar à pleno caminho do afundamento e, iria a pique em poucos minutos. Tadeu, fazendo força na vara-remo para salva-lo se movimentava, ora à estibordo, ora à bombordo numa tentativa sobre-humana de manter-se em pé no convés, mas com a movimentação da água não conseguia controlar-se, muito menos controlar o barco(?), deixando-o, por fim, navegar à deriva. Titânico parecia xucro, Tadeu, sobre lombo de um touro selvagem chacoalhando de um lado para o outro e, pior, querendo derruba-lo na correnteza em direção lugar nenhum. Mesmo com dificuldade, sem timão, leme, nem mesmo âncora, continuou lutando para manter-se sobre a embarcação e tentou desesperadamente se agarrar onde deu quando o barco(?) rumou descontrolado em direção ao barranco grudando-se em espinhos pensando ser cipós e ficando com a mão ensaguentada. Enquanto, Titânico, continuava seu destino de barco(?) indomável parecendo revoltado contra seu criador, continuava adernando à bombordo e à estibordo já coberto de água e, num movimento brusco, derrubou Tadeu sem qualquer cerimônia. "Homem ao mar, melhor, homem ao ribeirão, homem ao ribeirão", gritou ele com água até o peito. Rapidamente joguei-lhe uma corda, salvando aquela tenebrosa situação. Nessa altura, molhado até os ossos, saiu do ribeirão mais rápido que pode. Quanto ao barco(?), ficou naufragado e trancado em arbustos e árvores, onde por hora foi esquecido. Tudo isto na sua viajem inaugural. "Que coincidência, parece historia de outro barco famoso, será obra do destino?" Perguntávamos um para o outro, enquanto mais uma cerveja era aberta, esta para refrescar aquela quentíssima agitação cômica. Rimos de nós, um do outro, do tombo de Tadeu na água, da minha expressão patética correndo ao lado do ribeirão tentando joga-lo uma corda e, rimos muito da desgraça do naufrágio do Titânico, o barco(?) condenado. "Também, com um nome desses nada poderia salva-lo". Rimos mais ainda, até doer a barriga. 
   Dias depois, a taipa de pedras que estávamos construindo foi destruída, ainda com cimento fresco, por uma nova cheia das águas do Ribeirão Garcia. Com o passar das semanas o desbarrancamento foi diminuindo, mas o temor aumentava cada vez que chovia. Somente após muito tempo a situação foi resolvida com a construção de um enorme gabião pelo poder público. Assim, a casa não correu mais risco de cair. 
  Para nós, restou um assunto cômico para rir descontraidamente com os amigos por muito tempo, todos se divertiam ouvindo a história do naufrágio do barco(?) Titânico, algo que Tadeu adorava contar. "Com a presepada do barco Titânico", falava a quem quisesse ouvir, "minha imagem de marinheiro ficou comprometida, aranhada, enferrujada, naveguei pelo mundo todo, enfrentei tempestades em alto mar, sou marujo corajoso, nunca tive problema em nenhum oceano e, que decadência, vim naufragar aqui em Blumenau, não no famoso Rio Itajaí Açu, mas, no Ribeirão Garcia, vejam só, naufraguei num ribeirão, que péssimo histórico para um navegador oceânico com experiencia mundial". Dizia, ria e, todos que o ouviam riam com ele.
   Anos depois, em 2016, quando faleceu devido um AVC (ou, será que foi a ficha da mega enxurrada que caiu?), amigos conformaram-se sabendo que finalmente tinha conseguido realizar sonho de navegar até o fim dos tempos num belo veleiro colorido. A partir, passou a singrar mar calmo onde jamais precisará de casa, também, onde ninguém vai lhe cobrar aluguel e nada vai lhe faltar. 
 Amigos sabem: certamente deve estar rindo e, assim, sentem-se felizes pela dádiva de te-lo conhecido.  Agora tendo o que quiser, caso ouvisse conselho, algo que nunca fez, gostariam de mandar-lhe um recado:  Tadeu, fique longe do barco Titânico.

         Pela alegria das raras amizades,
                                              Cesar Otacílio, 
                                                        artista plástico.
             
Esta crônica é a primeira do PROJETO-CRÔNICAS: A ALEGRIA DAS RARAS AMIZADES. Objetivo é escrever para manter vivo amizade com quem não está mais no nosso meio, porque, bons amigos, é para a vida toda.

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                                                  CURIOSIDADE
O artigo, reproduzido abaixo, foi publicado na coluna "Artigos" do Jornal de Santa Catarina em 16-07-1999, mostra característica de Tadeu Bittencourt e da cidade de Blumenau nos anos 1990.
          A vida imita a arte 
                           (*) Cesar Otacílio 
 A divulgação  do início das obras de reurbanização da Rua XV de Novembro, com alguns paralelepípedos da famosa via indo parar num museu como símbolo da historia e modernização da cidade, lembrou-me um trabalho numa exposição coletiva de arte, da qual participei. Ao ver a imagem do prefeito Décio Lima levantando uma pedra (a primeira retirada da rua) ocorreu-me a ligação e parentesco com uma obra acontecida em 1991, onde outro paralelepípedo foi destaque e centro das atenções. 
 Na Galeria Açu Açu acontecia a exposição Blumenau-Retratos Falados, comemorativa aos 141 anos da fundação da cidade. Entre os expositores (13 ao todo) estava Tadeu Bittencourt, que apresentava uma instalação envolvendo um paralelepípedo. Explicava que inspirou-se numa faixa afixada no (antigo) Bar Kriado (Da Rua Alvin Schrader), que dizia: "Blumenau tem mais de um milhão de paralelepípedos". Tadeu usava a pedra adornada com fone de ouvidos e óculos de grau de miopia. O paralelepípedo incomodava, pois ninguém queria ser um. 
 Já é conhecida a característica de Bittencourt de provocar a reação das pessoas. Capaz de grandes e empolgantes debates, atualmente defende a valorização do artista plástico. Nas mostras, garante, deveria o autor receber cachê ou a garantia de uma obra vendida. 
 Do seu paralelepípedo poucos lembram (mesmo porque poucos tem o costume de visitar exposições). Uma obra efêmera refletindo a sua maneira de sentir.
 A reurbanização que se inicia só tornou-se concreta devido à humildade do prefeito em visitar os comerciantes, convencendo-os finalmente da importância da mudança. Poderíamos até dizer: desnudou a pedra-Bittencourt...aquele paralelepípedo de óculos e com fone de ouvidos...
 Talvez no futuro, quando visitarmos o museu onde ficarão as primeiras pedras da Rua XV com os resíduos da história, lembraremos de uma fase da cidade. Seria interessante que junto aos paralelepípedos históricos estivesse o paralelepípedo-Bittencourt, registrando dois momentos da "cidade com mais de um milhão de paralelepípedos".
                                                                                                       
                                                                       (*) O autor é artista plástico.