segunda-feira, 17 de abril de 2017

Crônica: Lindolf Bell: Declamando, queria salvar a dignidade das pessoas

                                              
                                                     Projeto-crônicas: 
                                                     A Alegria das Raras Amizades
                                                     Por Cesar Otacílio


   Lindolf Bell: Declamando, queria salvar
                          a dignidade das pessoas                           
               Poeta da paixão
                            Poemas escritos e declamados com paixão, fizeram de Lindolf Bell
                            um dos poetas mais cultuados da nossa geração.

                            
                 Lindolf Bell (1938-1998), poeta, deixou marcas na memória daqueles que o viram recitando versos, ou ouviram-o falando empolgado sobre assuntos diversos. Quem apreciou-o declamando, ou conversou com ele num lugar e num momento qualquer, jamais esqueceu sua radiação, carisma, magnitude, elegância comportamental, mesmo 20 anos após sua morte. Para estas pessoas, ele era um ser energético, especial, superior, uma espécie de metamorfose de rei, de papa, de ator nos melhores momentos, ou de um revolucionário ditando regras com dedo em riste, com voz pausada, segura, rasgando a alma de quem o estivesse a ouvir. Declamando, tinha dignidade e força que representava querer salvar todos os seres humanos da suas próprias desgraças, dava impressão estar em guerra contra a mentira, ignorância, soberba e ganância. Recitando suas poesias, parecia gritar para salvar todos até mesmo da morte. Quem o visse em ação tinha certeza disso e sentia-se atraído para ouvi-lo igual metal ao imã. Ele, ao declamar, olhava em todas as direções, as vezes com mãos nos bolsos, outras com elas no ar. Sim, poesia é capaz de remover os pecados da humanidade e, se deixasse, a pregaria com pregos enormes no coração das pessoas.

            A poesia melhora as pessoas, diria em seguida com tanta veemência que não resultaria qualquer dúvida. Talvez, por ser um apaixonado pela arte, pela poesia, pela declamação e pela vida, seria capaz de enterrar com caixões de aço toda a falsidade das pessoas, as mediocridades, atitudes obscuras, ações interesseiras, fúteis, frívolas e violentas. Talvez, sem saber razão de tanta emoção e de onde vinha tanta vibração, no fim resultava apenas a declamação apaixonada de um homem com poesia brotando pelos poros igual suor, com versos circulando no sangue, com palavras escorrendo aos borbulhões pela testa quando está escrevendo na velha máquina de datilografar. Então, criando com o coração em disparada, fuma um cigarro, bebe alguma coisa, e, continua a datilografar madrugada a dentro. Busca a dor, a paixão, o amor, a alegria, temas que nunca abandonou. Homem poderoso, bastava vê-lo declamando, ou, apenas conversar com ele, para esta impressão se tornar verdadeira. 

        Dono de uma voz vigorosa capaz de estremecer colunas e de calar multidões agitadas, seus recitais pareciam obras encomendadas pelos deuses da arte, algo raro que se pagaria facilmente uma fortuna para vê-lo em ação. Assim, com enorme sorriso nos lábios iniciava seus recitais, as vezes improvisados, outras vezes direcionados, com palavras ditas bem altas surpreendendo o público, calando conversas e chamando atenção para si. 

              "Se um índio Xokleng..."

Recitava:   
  
              "...subjaz 
               no teu crime branco
               limpo depois de lavar as mãos..."

         Sim senhor, a declamação era parte dele. E, prosseguia sereno, utilizando-se dos gestos, falava pausadamente valorizando cada palavra: 

               Se a terra  
               de um índio Xokleng 
               alimenta teu gado 
               que alimenta teu grito 

               Declamava, gelando com o olhar as pessoas presentes.
Recitava o amor pela natureza, amor pelas pessoas, amor pelos animais, amor pelo rio da infância, amor pelo jardim da mãe e, o amor que tinha pela vida. 

           Uma estrela musical? Parecia, deixando certeza de se tratar de um um grande orador. Todos extasiados com a sua performance nem piscavam para aproveitar cada gesto daqueles raros momentos. Após, agradecia os aplausos, recebia abraços, apertava as mãos das pessoas e, voltava sentar-se, a conversar e a tomar sua bebida. 

        Uma dessas pérolas memoráveis aconteceu de maneira improvisada numa noite no bar do Teatro Carlos Gomes, no final dos anos 1980. Após mais uma emocionante apresentação da Orquestra de Câmara de Blumenau, se encontrava no bar muitos espectadores saídos do espetáculo. Lindolf Bell, sentado numa mesa, de surpresa se levantou e iniciou uma declamação com tanta energia que o silêncio de imediato imperou:

           " O bem te vi
             só fala bem te vi....

...de súbito falou circulando devagar entre as pessoas e as mesas do bar. Com gestos teatrais, mãos e dedos enrijecidos no ar, olhos procurando os olhos de todos os presentes, voz parecendo querer estilhaçar taças de cristais, andava, dando impressão de levitar do chão. Lábios tremendo pela força das palavras, fazia corações disparar numa frequência descompassada. 
Prosseguia:

             Na paz da tarde 
             é bem te vi.. 

          Recitava; ora com voz grave na tonalidade mais alta que conseguia, ora, apenas sussurros com palavras ditas baixas, pausadas, mas saídas da sua boca feito cola para grudar na roupa, nos corpos e nas mentes. Será ator? Ou, quem sabe revolucionário? Guru? Diplomata? Apenas um artista, certamente responderia abrindo um enorme sorriso a quem o perguntasse. E...

               ...eu bem o vi e bem te vejo
                  entre lembranças, antigas escritas.
                  E, para sempre, por decifrar: 
                  brando, sonoro, enigma no ar.     

            Os dias passavam. 
         Não só de poesia ocupava seu tempo, também nutria paixão pelas artes plásticas, sendo um destacado marchand dono de uma galeria de arte, a Galeria Açu Açu. Com ela, estimulava talento dos artistas de Blumenau e de muitos outros lugares. Um destaque da sua personalidade ficava na importância que dispensava às pessoas, desde o atendente no bar, no supermercado, nas ruas e todos mais com quem falava. Costumava olhar com tanta energia nos olhos daqueles que encontrava que fazia parecer dizer: "Acredito em você, coloque para fora todo talento que possui", representava implorar para que todos: "Assumam melhores atitudes, o mundo precisa de vocês", diria, "A cidade precisa de vocês, eu preciso de vocês". Falava isso apenas com o olhar igual o grito de Munch, expressionista e solitário. Na verdade, tinha grande capacidade em transmitir energia positiva e de credibilidade às pessoas.

       Ao conhece-lo, conclusão de ser um intelectual estimulador das melhores relações humanas logo se estabelecia. Seu objetivo principal: o talento, o valor humano, o refinamento das pessoas, o melhor daquilo que cada um possui. Valorizava o caráter, a honestidade, a inteligência, o sorriso aberto, a voz segura e a rizada plena. Por conta dessa exigência de ação, conversar com ele era certeza de receber enormes conhecimentos, principalmente quando falava sobre a vida, a arte, os sonhos, nesse caso, as palavras saiam parecendo enciclopédia tamanha capacidade de atração. Então, percebia-se, ele falava justamente o que sempre se queria ouvir. 

      Assim, declamava poesias com alegria onde fosse possível, bastava uma chance num lugar qualquer, num dia qualquer, numa hora qualquer para isso acontecer. Podia ser num palco sofisticado de um teatro, numa casa luxuosa, ou na rua, numa praça, num viaduto, num bar, poderia até ser para uma pessoa, ou para centenas delas, bastava sentir-se inspirado e, de improviso, realizar um verdadeiro show proporcionando um belo espetáculo performático. Ao recitar uma palavra iniciando uma declamação com sua potente voz, logo o silencio se fazia presente, aí, impunha-se de imediato parecendo estar numa apresentação no melhor palco do mundo. Atraia olhares com gestos, entonações e palavras ditas com força igual balas saídas de canhões. Seus versos emocionavam, pareciam punhais cortando a carne impura, noutros momentos, pareciam melodias amorosas apaixonando o coração de todos. Públicos diversos o ovacionavam, não importando se mendigos, andarilhos, serventes modestos, trabalhadores especializados, soldados, patrões, governadores, sem distinção, todos o ouviam. Empolgado e feliz por atrair tamanha atenção, recitava com paixão parecendo estar arrancando a faca do peito, sofria a dor e representava a alegria, entregando a todos o que tinha de melhor: sua emoção.

                          "Eu vim da geração das crianças traídas.
                           Eu vim de um montão de coisas destroçadas...
                           ...Eu inventei um brinquedo das molas de um tanque
                                               enferrujado.
                           Eu construí uma flor de arame farpado para levar na 
                                                solidão.
                           Eu desci um balde no poço para salvar o rosto do
                                                 mundo.
                           Eu nasci conflito para ser amálgama..." 
                    
          Declamava e, declamava, sem nunca se cansar.
         Ouvindo-o, os dias pareciam melhores, o céu clareava, crescia a sensação de algo importante acontecendo, algo confortador para enfrentar os dias com mais serenidade e alegria.
A arte o dominava completamente sua vida, com a galeria de arte, a Açu Açu, promoveu grandes exposições de pinturas e de esculturas, bem como, lançamentos de livros. Através dela, Blumenau aprendeu apreciar artes plásticas e conhecer obras de muitos artistas. Promoveu os primeiros leilões de artes na cidade, lançou muitos artistas e, especialmente, promoveu a minha primeira exposição individual de pinturas. Também, destaco, foi o primeiro crítico a publicar um artigo sobre minha obra (abaixo). Ainda, foi quem me deu condições de executar primeiro mural ao ar livre e foi o grande estimulador para o, meu, mural "As Costureiras" existir na esquina das ruas Santa Catarina e Dois de Setembro em Blumenau. Na verdade, fez o que foi possível para esta obra de 85m2 tornar-se realidade: marcou reuniões na prefeitura com o, então, prefeito Renato Vianna em 1995 e, para lá me levou numa tarde para apresentar o projeto e falar com o dirigente municipal. 
É preciso que se diga: apoiar artistas jovens era normal para ele, e, revelar novos talentos era um dos seus principais objetivos. Como agitador cultural, trabalhava intensamente para aumentar o número de artistas na cidade, então atendia e dava atenção à todos que o procuravam, isto, indiferente do segmento cultural, desde literatos escritores à artistas plásticos.    

              Crítico estimulador da produção artística
  
       Meu primeiro contato com a obra do poeta Lindolf Bell deu-se através da Televisão no final dos efervescentes anos 1970, quando declamava poesias no noticiário da extinta TV Coligadas de Blumenau. Acontecia sempre aos sábados ao meio dia e, de imediato, chamava atenção pela força nas entonações e nos seus gestos a cada palavra dita firme e clara. Seus versos ecoavam nas casas, ressoavam nas salas, chegavam nas cozinhas e nos corações das pessoas e, para mim que gostava de ler poesias, suas palavras continuavam ecoando na semana seguinte. Chamou-me atenção seus gestos tensos com as mãos próximas do rosto, lembrando ator numa representação dramática numa peça de teatro.

         Blumenau, então um próspero município baseado na força da indústria têxtil, carecia do aprimoramento e do desenvolvimento artístico cultural, algo que Lindolf Bell percebeu e assumiu com maestria. Como forma de participação efetiva nos movimentos artísticos de valorização cultural, fundou a Galeria Açu Açu para divulgar e comercializar obras de artistas plásticos. 

    Os concorridos vernissagens que promovia lançando nomes de artistas (com convites luxuosamente impressos e distribuídos pelo correio para pessoas da sociedade), ainda hoje são comentados. Também os artigos críticos publicados na sua coluna de domingo no Jornal de Santa Catarina, onde apresentava suas opiniões, fazia críticas, divulgava nomes e obras de artistas, algo que nunca mais voltou acontecer por aqui. Os leilões de artes promovidos por ele nas principais cidades catarinenses, até mesmo em Curitiba no Paraná, igualmente merecem destaque por terem sido de enorme contribuição ao fortalecimento da arte na região. Hoje, maioria das obras das coleções particulares na região de Blumenau são herança desses leilões.

     Incansável, fazia muito mais: costumava comprar obras dos artistas e sentia-se feliz dando condições de trabalho a muita gente talentosa, atitude que, seria de grande impulso na carreira de muita gente, inclusive na minha, também nunca mais foi visto algo parecido acontecendo em Blumenau. Com tantas atribuições, sua vida era intensa, mas nunca a ponto de cancelar recitais de poesias em escolas, nem em saídas de fábricas ou nos salões de bailes. 

      Em 1980, quando promoveu uma grande exposição com obras de Sílvio Pléticos no teatro Carlos Gomes, pude enfim conhece-lo pessoalmente. Durante o vernissagem, ele, educadamente, como bom anfitrião cumprimentava todos os presentes, veio onde eu estava com o amigo Flávio Meirinho (artista plástico 1959-1986). Perguntou nossos nomes e conversou pouco conosco, tempo suficiente para causar-nos impressão de se tratar de uma pessoa de fortíssima personalidade. A partir desse ano, passei frequentar Galeria Açu-Açu e tive certeza do meu caminho artístico, na verdade, foi divisor das águas: ter amizade com Flávio, um dos maiores desenhistas e interessado em pintura que já conheci, apreciar a exposição do Pléticos e conversar com Bell sobre pintura, então, não tive mais dúvidas, descobri que queria pintar. 
      Pouco tempo depois, comecei a participar de exposições coletivas e nunca mais parei, nem de pintar, nem de expor meu trabalho. Principalmente, a partir dessa época tudo pareceu melhorar, ora pelos desenhos de encomendas para fábricas têxtil junto com Flávio que rendia boas finanças, ora pelo estímulo recebido do poeta, ora pelos amigos que fiz no meio artístico, ora pelas aquisições de obras que periodicamente Bell viria fazer ou, que intermediava com colecionadores de arte, só me dava certeza de que havia encontrado minha profissão.

      Bell, tinha olhar clínico com a pintura: "trabalha mais a cor, não tenha medo da cor, coloque mais emoção na pintura, tem que se esforçar mais, você consegue", dizia-me. Desafiando-me, como fazia com todos aqueles que o procuravam para mostrar-lhes trabalhos em papel, telas, como também em metal, pedra, madeira, ou para mostrar-lhes textos e pedirem sua opinião. Na verdade, desafiava todos com quem tinha contatos e, se sentia feliz vendo mais pintores e escritores surgindo ao seu lado. Assim, eu, com essa sua energia incentivadora ao lado, comecei levar muito a sério a pintura e, de tempos em tempos apanhava alguns quadros e me dirigia à sua galeria para mostra-lhes meu progresso. Por isso, imaginem minha alegria quando, em 1982, disse-me que já estava pronto para a primeira exposição individual. Naquele dia saí da Galeria Açu Açu com uma alegria tão grande que tinha vontade de abraçar todas as pessoas na rua. Um ano depois, durante a individual no Teatro Carlos Gomes, Bell publicou o que seria a primeira matéria crítica sobre meu trabalho (abaixo), outro momento especial. Nesse dia, literalmente, sai correndo pela rua pulando com o jornal de domingo na mão, naquele momento ninguém era mais feliz no mundo do que eu. "Demais, meu trabalho está numa página de jornal". De verdade, tinha vontade de gritar isso na rua. 

     Depois da primeira individual, Lindolf Bell passou a comprar quase que religiosamente obras minhas. Gostava dos guaches e dos pequenos óleos, adquirindo-os em quantidade para revende-los nos leilões, até quando morei em São Paulo, 1987-1988, eu lhe enviava obras para escolher, ele selecionava algumas e fazia os depósitos. 

      Em 1991, entre grandes debates sobre artes que aconteciam rotineiramente na Galeria Açu Açu (ver foto abaixo), quando lá se reuniam artistas e pessoas pensantes de Blumenau (uma das discussões era sobre necessidade de Blumenau ter uma lei municipal de apoio artístico cultural) e, embalado nesses debates, comecei a falar da minha intenção, sonho, em pintar murais ao céu aberto, à exemplo dos muralistas mexicanos. Bell, abraçando a ideia e direcionando-a à poesia, sugeriu fazermos um grande painel-poema na parede da sua própria galeria. "você com a pintura, eu com a poesia, o que acha?" Perguntou-me. "Ótimo", respondi, feliz por me permitir ser referenciado para sempre ao lado da sua importante obra. Assim fizemos. Parti para o trabalho, ele providenciou o material, escolheu um pequeno poema (abaixo) e, logo o trabalho, primeiro mural de um saga, estava pronto para a inauguração. Eu não sabia, mas, naquele dia várias surpresas ainda me aguardavam. Bell, como sempre, um anfitrião preocupado com o sucesso do evento, preparou uma festa com som e palco para um recital de poesia. Havia convidado muitas pessoas, entre as quais, o, então, prefeito Victor Sasse. Este chegou a pé, chamando muita atenção. Trouxe, como oferecimento, o Bierwagen, o carro da cerveja, uma camioneta antiga com um simpático velhinho tocando bandoneon e outro senhor com trajes típicos distribuindo copos de chopp para quem quisesse. O músico abria e fachava o instrumento, uma visão agradável com trejeitos de artista popular da região. Assim, sugeri ao Bell tirar a música eletrônica e colocar o microfone nele, o único músico tocando ali no momento. Bell, demonstrando mesmo pensamento, foi de imediato providenciar o aparelho para bem próximo do velho músico. A partir, o som daquele decorado bandoneon passou a se destacar na algazarra que o chopp havia estimulado. Depois da festa terminar, veio-me agradecer por destacar o bandoneonista na festa, só então tomei conhecimento de que seu pai foi um exímio tocador de bandoneon, justificando assim sua alegria com aquele músico na inauguração do nosso painel-poema. Até, disse-me, a lembrança do pai tocando o instrumento, com a família reunida ao redor do fogão à lenha no inverno, é guardada à chave de ouro no canto esquerdo do peito.

       Final dos anos 1980, foi a fase áurea da Galeria Açu Açu, tudo havia melhorado, até a logomarca havia mudado (coincidentemente, fui eu quem a recriou quando trabalhava na agência Scriba propaganda), leilões aconteciam periodicamente, as vendas de obras de arte só aumentavam, direitos autorais de livros e outros bons rendimentos avistavam-se no horizonte. Ele, animado, havia mudado sua galeria de arte para um espaço maior onde sempre ficava lotada nos vernissagens que promovia.   

      Seu interesse pelas artes plásticas crescia a medida que promovia novas exposições e leilões de artes. Dessa maneira se permitia manter compras constantes de novas obras, tanto minhas, quanto de outros artistas. 

        Sua poesia era o objetivo primordial, as artes plásticas, o desafio. Fazia muitos amigos no meio artístico, com seu estímulo os artistas trabalhavam mais e criavam mais. Pintores, poetas, escritores, escultores, produziam e depois se encorajavam mostrar-lhe os resultados. O que acha? Tinham medo de perguntar-lhe, poderia não gostar. Mesmo assim, nunca desencorajava novos artistas, no fim, parecia implantar desafios para serem superados pelo talento. "Só resta ao artista, produzir". Dizia. Então, surgiam novas pinturas, esculturas, poesias e livros pipocando pelos cantos da cidade. 

      Incrivelmente, sua importância em estimular a produção da arte regional ainda não foi inteiramente festejada. Talvez devido nunca ser inteiramente compreendida a influencia que um artista verdadeiro exerce no seu meio e, sempre, faltará quem consiga mergulhar por inteiro no âmago da sua personalidade e da sua arte. Sempre foi assim, grandes artistas raramente são reconhecidos em vida, tanto em Blumenau como em qualquer parte do mundo. 

        Lindolf Bell era a arte querendo fazer parte da vida, era um gerador energético explodindo de emoção, era um farol sinalizando a direção, era alguém gritando que tudo passa pelo coração. Ninguém foi maior ao seu lado. 

     Como pessoa influente que era, muitos artistas o procuravam. Escritores querendo sua avaliação em redações, novos pintores na busca do parecer se tinham ou não talentos, outros querendo vender-lhes obras, jornalistas, publicitários, moldureiros, etc. Nunca deixou de atender quem o procurava, mesmo talentos medianos com pretexto de receber impulso na carreira artística. Indiferente de ser novos escritores ou novos pintores, todos tremiam diante da sua seriedade e serenidade quando trabalhos avaliava e a sua voz poderosa era ouvida. 

     Sua voz, algo a parte, soava com tamanha entonação que de imediato causava respeito, ou, no caso, direcionava segurança e importância para as pessoas. Era cortante, era meiga, mas, jamais, desencorajava quem quer que fosse. Logo, qualquer contato com ele se tornava especial, sendo que a partir todos que o procuravam tornavam-se seus amigos e, ele demonstrava estar sempre pronto para conversar sobre qualquer assunto, das alegrias, aos temores e às inseguranças; bastava procura-lo. Um guru? Um papa? Um super-herói? Talvez. Mas, bastava conversar com ele para ter certeza de ser apenas alguém simples com coração do tamanho da terra e, a terra, depende de pessoas iguais a ele para continuar girando e existindo.     

                           Poeta a mais de mil por hora

      Para muitos que o conheciam, o dia da morte de Lindolf Bell foi um dos mais tristes. Provocou comoção naqueles que sabiam da sua enorme energia radiante e da falta que faria para quem o  respeitava, o amava, especialmente, família, amigos e, artistas. 
    O sol pareceu ficar fraco, terra parou por um segundo, silencio imperou por minutos sem fim até o pensamento absorver triste realidade. Para artistas plásticos, poetas, escritores, médicos, políticos, jornalistas, trabalhadores, estudantes, pessoas comuns, principalmente para àqueles que se acostumaram com sua influência, sua morte trazia a tona uma pergunta: E, agora? O que será das pessoas? Principalmente, o que será de nós? Quem mais vai nos estimular? Criticar? Quem mais vai brigar com nós quando parecermos preguiçosos? Desleixados? Frívolos?   

       Com sua morte, um sentimento de vazio tomou conta das pessoas que sabiam o quanto o mundo precisa de homens com a energia e com o coração igual de Lindolf Bell.

      Naquele dia triste, eu, como muitos que trabalhavam com ele, fiquei meio sem rumo, no mesmo momento estava perdendo um bom amigo e um dos maiores incentivadores do meu trabalho (ver matérias abaixo). 
     Fui para Timbó onde ele morava. Nem sabendo bem porque, no caminho parei nos bares de beira de estrada, primeiro com intenção de conformar tristeza com vodka e água tônica, mesma bebida que costumávamos beber em noitadas no bar do Teatro Carlos Gomes, como também entrar nos mesmos estabelecimentos que certamente ele entrou muitas vezes quando se dirigia para casa. Na verdade, sabia, quando em vida ele adorava entrar nesses bares, isso desde estabelecimentos conservadores aos nem tanto assim. Humorado, como levava a vida, brincava que os pontos comerciais indicados com luz vermelha eram pitorescos para um senhor burgues frequentar e, também, onde um poeta podia se inspirar sem ter que explicar nada à ninguém.           Certamente, buscava novas poesias, histórias, textos perdidos pelos cantos; procurava versos nos olhares das mulheres da noite, nos sorrisos escondidos atrás dos batons, na sensualidade dos movimentos e das danças provocantes. Poesia pura, se entregava à ela. 

       Mas, nada de novidades, para ele tudo era poesia. Transformava a vida em poesia; a fala das pessoas, o andar dos homens, a esquina da rua, a árvore da infância, os animais, o rio. 

      Lindolf Bell, parecia cometa a brilhar mostrando a direção, passou a mais de mil por hora, dava impressão que nunca pararia e era superior até mesmo da própria morte. Passou tão rápido que não foi inteiramente visto, continuou sua trajetória de brilho e só parou quando encontrou a constelação onde estão os maiores poetas da terra e, agora, está lá declamando poesias junto deles num sarau sem fim.

       Passou rápido que nem deu tempo de dizermos o quanto dele precisávamos, o quanto todas as pessoas do mundo dele precisavam, precisam, só que muitos não sabiam e muitos outros nunca saberão. 

     Hoje, resta sua poesia, um legado para ser compartilhado por todas as pessoas, indiferente da nacionalidade ou raça, conhecer Lindolf Bell é mergulhar na própria alma, é conhecer um pouco mais de si próprio

     Passou rápido, mas não tão rápido que não pudesse falar de amor, da paixão entre as pessoas, falar pelas pessoas, pela natureza e da dádiva da vida.  

     Escreveu poemas apaixonantes para serem lidos, declamados, por todas as pessoas em todos os lugares: Nos pontos de ônibus, nas escolas, nos hospitais, nos reformatórios, salas das fábricas, nas praias e onde mais houver pessoas, como ele tão bem gostaria que acontecesse com a sua poesia e a de todos os poetas. 

    Mergulhar num poema de Lindolf Bell é entender um pouco mais dos enigmas do amor, é descobrir um pouco mais sobre amizade, é procurar viver intensamente e nunca conseguir entender os mistérios da vida. 

    Recitava suas poesias com paixão e performance igual de um grande ator de teatro, quem o viu declamar, nunca o esquecerá, também nunca existirá alguém que conseguirá incorporar tanta paixão nas palavras declamadas 

...num dia qualquer...numa hora qualquer...para qualquer pessoa... 

    Só Lindolf Bell era assim: declamando, queria salvar a dignidade das pessoas.       




Um final de tarde na Galeria Açu-Açu em 1981..
          Aqui, com Lindolf Bell, Leila (?) e Rubens Oestroem. Na foto, chama atenção a mesma cor dos calçados dos homens (não foi combinado) e minha saudosa camiseta da série "Impacto social", na qual se lia: "Cuidado: Bois. Coitados".



Com Lindolf Bell em frente ao Painel-poema (600x900cm), em 1991.



       Dedicatória de Lindolf Bell no livro O Código das Águas, em 1984, 
                                 ano de uma das maiores enchentes do Rio Itajaí-Açu  em Blumenau.                                                

                    
          Artigos publicados por Lindolf Bell

         Os três artigos, reproduzidos a seguir, foram publicados por Lindolf Bell. Neles podemos conhecer um pouco mais sobre meu trabalho e da sua poetizada redação, bem como, um pouco mais de uma época próxima passada.   


Artigo 1
Publicado em: Jornal de Santa Catarina (Blumenau), 20 de março de 1983    
                                                                                   
Cesar Otacílio: Vigor e inquietação
                                                                                 
                                                                                                                             Lindolf Bell     
      
           A exposição de Cesar Otacílio, aberta sexta-feira, no Teatro Carlos Gomes, está recebendo visitação compacta e atenta. Trata-se na verdade, da primeira individual de um artista jovem, inaugurando o calendário de individuais da Galeria Açu-Açu e Teatro Carlos Gomes, em 1983. Com apoio do Jornal de Santa Catarina, Coca-Cola, TV Coligadas e Departamento de Cultuara da Prefeitura, a mostra pode ser vista até o final de março, das 10:00 às 22:00 horas.
        Uma exposição imprescindível para entender a inquietação criativa da cidade, onde as linguagens se multiplicam numa proposta cada vez mais aberta e menos preconceituosa.

  Há mais de dois anos Cesar Otacílio entra e sai na Galeria Açu-Açu. Nos horários mais imprevistos. E desenvolvendo seu trabalho previsível desde o princípio, desde o primeiro, quando foram perceptíveis o vigor e a energia no traço e na cor.
  Esta energia criativa, carecendo de uma disciplina que a transformasse em forma plástica, estruturou-se aos poucos. Conversas em exposições, leitura de livros, indagações e respostas, e, um trabalho permanente, de rara convicção, amadureceram Cesar Otacílio para a primeira individual.
 Não deixa de ser comovente. Sobretudo, não deixa de ser compensador. O tempo inteiro de nosso conhecimento, tratou-se de um ato de mútua confiança, onde inúmeras vezes o constrangimento alternou-se com a emoção, diante do visível crescimento do artista.   
 Em verdade, depois de Guido Heuer, Reynaldo Pfau e Rubens Oestroem (hoje na Alemanha), raras vezes tenho visto confiança tão acentuada no próprio talento.
  Aqui a certeza de estar no caminho exato, onde solidão e necessidade de comunicar-se resumem um signo e uma aventura de um artista jovem, com todos os requisitos que podem fazer dele um vencedor.
                                       II
 A arte geométrica (cubista?) tem artistas poderosos em sua proposta. Mas esta tendência contemporânea estaria exaurida? Não! Como nenhuma proposta esgotou-se. Esgotaram-se artistas. A capacidade renovadora das linguagens faz parte do destino intrínseco da arte. E este destino não pode ser esmagado, por inteiro, por todo tempo, por nenhum tipo de policiamento quer estático, moral ou político.
  O que há de novo numa pintura geométrica que surge em Blumenau? Há quinze anos Ele Hering mostrava seus estudos na Alemanha, onde celebrava-se klee, kandisnsky e outros, numa visão pessoal, sob o olhar de espanto da cidade.
  O que há de novo em Otacílio Gomes, buscando inspiração nos recursos formais cubistas, transparece numa mensagem icônica forte, que sintetiza uma "leitura" blumenauense-brasileira e um possível geometrismo, onde a temática são pássaros, homens, mulheres, animais, vegetais de uma brasilidade do Vale do Itajaí ainda por inventariar, a partir de ângulos, visões, revisões, enfim, novas concepções plásticas que se contraponham às eternas redundâncias.
 A rigidez formal do cubismo de Cesar Otacílio, não consegue esconder um substrato emocional, uma expressão onde a melancolia se transparece, convive com irreverência no visto de soldados, pássaros e animais.    


                                      
Artigo 2
Publicado em: Jornal de Santa Catarina (Blumenau), 18 de dezembro de 1986 

              A expressão, o enigma: Cesar Otacílio                                                                                  
                                                                                    Lindolf Bell 

    Todo artista vive um destino de caracol. 
    Carrega consigo a casa: solidão, circunstâncias, inquietação. 
    O resto conjuga-se com o verbo amadurecer. 
    Cada fruto no tempo certo, cada obra à expressão própria.
    No entanto, nunca deixa de ser reconhecível.
   Árvore da criatividade, a verdade pessoal passa uma sombra inconfundível, independentemente de tema, técnica, suporte.
     Transparece, vigora, defende, a fundo, a própria natureza que todo artista procura preservar.
     Cesar Otacílio inscreve-se nesta categoria da resistência. 
     Onde cabe a difícil tarefa de não entregar-se a modismos. Onde defende o próprio trabalho de acordo com a sua maneira de ver o mundo. E isto há vários anos, antes do expressionismo abstrato, figurativo e geométrico, tomar de assalto exposições, galerias, museus, como o caminho mais atual na arte contemporânea ocidental.
      Temas surgem, ressurgem.
   A figura humana (soldados, músicos, tomadores de sopa, costureiras), numa sequência de tipos incomuns na pintura brasileira, se alterna com animais (vacas, cavalos), herança no interior do Vale do Itajaí. 
   A deformação em Cesar Otacílio atinge o limite sutil de uma leitura não convencional, mas não elimina a intimidade com a superfície visível, provocando a comunicação pelo tênue fio da deformação sob controle. 
   Expressa muito do que se esconde, refletindo em cenas solitárias, onde a beleza assume a face não da serenidade, mas da atrevida experimentação das máscaras, do embaraço, do susto dos hóspedes de corpos e rostos em experiencias alternativas.
       Um lado incerto da natureza, nem sempre dizível. 
      Ali Cesar Otacílio joga com a angústia, o espanto, o enigma.


  Artigo 3
  Publicado em: Jornal: A Notícia (Joinville), 23 de maio de 1993    

Artista e cidadão, uma mesma temática
                                                        
                                                                                 Lindolf Bell

      Não é de hoje o fascínio de Cesar Otacílio pela figura. Não como tema de cópia fotográfica na plasticidade, mas como conjunto de formas palpitantes debaixo da superfície do corpo. 
      O artista nasceu no Alto Vale do Itajaí, vive em Blumenau, um espaço cultural capaz de incorporar, ampliar, refazer, revelar uma propícia e permanente atividade criativa. A duras penas muitas vezes, muitas vezes no limiar da pobreza e da falta de apoio absolutos.
      Passam as águas do Rio Itajaí-Açu.
      Cesar Otacílio pinta um painel na cabeceira da ponte da estrada-de-ferro (quem se lembra?).
      Passa história,
      passa a memória, o artista inscreve em parede pública (um presente à cidade e quem percebeu este afeto?) o primeiro painel-poema do pais.
       Passam e se renovam dirigentes da cultura, Otacílio permanece em sua luta solitária, escrevendo manifestos quando a classe toda se vê jogada nas latas de lixo da desinformação de uma fatia da burguesia, incapaz de enxergar um palmo além do fascínio pelas aparências e o dinheiro que fatura às custas de artistas-criadores e outras classes de cidadãos menos privilegiados.
       Independente desta posição ideológica, onde a dignidade encontra lugar no dia-a-dia, o lado sensível permanece em sintonia com a necessidade intrínseca de expressar-se. E se o ser humano é peso e medida de sua batalha como cidadão, a figura permanece matéria vital de sua arte. Essa consagração numa obra tão jovem quanto eficiente, reaparece (depois dos óleos, acrílicos, tintas de automóveis) com uma nova série de aquarelas. Inicialmente mostradas no Espaço de Arte Açu-Açu (1992), foram também apresentadas na Fundação Frei Godofredo de Gaspar, ao lado de outras técnicas com diferentes temáticas, entre as quais animais, naturezas mortas e objetos de uso diário.
         Simultaneamente as figuras são construídas com linhas plenas de alterações. Deformações que não eliminam suas características básicas, mas se completam com expressões da solidão, da ironia, do espanto, do impulso da vida que transparece muitas vezes melancólico, paradoxalmente fortes e desamparadas, subjetivas e inquietas, rebeldes na harmonia da composição.
          Nas manchas, pontos, linhas, insinua-se a insegurança não da estética pessoal de Cesar Otacílio, mas das figuras revistas (adolescentes, operários de fábrica, músicos, soldados), que fazem parte deste tempo e desta cidade e deste país de pindorama, onde nem tudo é justo e perfeito. Se fosse, afinal de contas, para que serviriam os artistas e seus olhos abertos para as diferenças indesejáveis, numa sociedade que tantas vezes se assemelha a um aglomerado de avestruzes com a cabeça, vaidosamente, enfiada na areia?