Projeto-crônicas:
A Alegria das Raras Amizades
Lindolf Bell: Declamando, queria salvar
a dignidade das pessoas
Poeta da paixão
Poemas escritos e
declamados com paixão, fizeram de Lindolf Bell
um dos poetas mais cultuados da nossa geração.
um dos poetas mais cultuados da nossa geração.
Lindolf Bell (1938-1998), poeta, deixou marcas na memória daqueles que o
viram recitando versos, ou ouviram-o falando empolgado sobre assuntos diversos.
Quem apreciou-o declamando, ou conversou com ele num lugar e num momento
qualquer, jamais esqueceu sua radiação, carisma, magnitude, elegância
comportamental, mesmo 20 anos após sua morte. Para estas pessoas, ele era um ser
energético, especial, superior, uma espécie de metamorfose de rei, de papa, de
ator nos melhores momentos, ou de um revolucionário ditando regras com dedo em
riste, com voz pausada, segura, rasgando a alma de quem o estivesse a ouvir.
Declamando, tinha dignidade e força que representava querer salvar todos os
seres humanos da suas próprias desgraças, dava impressão estar em guerra contra
a mentira, ignorância, soberba e ganância. Recitando suas poesias, parecia
gritar para salvar todos até mesmo da morte. Quem o visse em ação tinha certeza
disso e sentia-se atraído para ouvi-lo igual metal ao imã. Ele, ao declamar,
olhava em todas as direções, as vezes com mãos nos bolsos, outras com elas no
ar. Sim, poesia é capaz de remover os pecados da humanidade e, se
deixasse, a pregaria com pregos enormes no coração das pessoas.
A poesia melhora as pessoas, diria em seguida com tanta veemência
que não resultaria qualquer dúvida. Talvez, por ser um apaixonado pela arte,
pela poesia, pela declamação e pela vida, seria capaz de enterrar com caixões
de aço toda a falsidade das pessoas, as mediocridades, atitudes obscuras, ações
interesseiras, fúteis, frívolas e violentas. Talvez, sem saber razão de tanta
emoção e de onde vinha tanta vibração, no fim resultava apenas a declamação
apaixonada de um homem com poesia brotando pelos poros igual suor, com versos
circulando no sangue, com palavras escorrendo aos borbulhões pela testa quando
está escrevendo na velha máquina de datilografar. Então, criando com o coração em
disparada, fuma um cigarro, bebe alguma coisa, e, continua a datilografar
madrugada a dentro. Busca a dor, a paixão, o amor, a alegria, temas que nunca
abandonou. Homem poderoso, bastava vê-lo declamando, ou, apenas conversar com
ele, para esta impressão se tornar verdadeira.
Dono de uma voz vigorosa capaz de estremecer colunas e de calar
multidões agitadas, seus recitais pareciam obras encomendadas pelos deuses da
arte, algo raro que se pagaria facilmente uma fortuna para vê-lo em ação.
Assim, com enorme sorriso nos lábios iniciava seus recitais, as vezes
improvisados, outras vezes direcionados, com palavras ditas bem altas surpreendendo o público, calando conversas e chamando atenção para
si.
"Se um índio
Xokleng..."
Recitava:
"...subjaz
no teu crime
branco
limpo depois
de lavar as mãos..."
Sim senhor, a declamação era parte dele. E, prosseguia sereno, utilizando-se dos gestos, falava pausadamente valorizando cada palavra:
Se a
terra
de um índio
Xokleng
alimenta teu
gado
que alimenta teu
grito
Declamava, gelando com o olhar as pessoas presentes.
Recitava o amor pela natureza, amor pelas pessoas, amor pelos
animais, amor pelo rio da infância, amor pelo jardim da mãe e, o amor que tinha
pela vida.
Uma estrela musical? Parecia, deixando certeza de se tratar de um
um grande orador. Todos extasiados com a sua performance nem piscavam para
aproveitar cada gesto daqueles raros momentos. Após, agradecia os
aplausos, recebia abraços, apertava as mãos das pessoas e, voltava sentar-se, a
conversar e a tomar sua bebida.
Uma dessas pérolas memoráveis aconteceu de maneira improvisada numa noite no
bar do Teatro Carlos Gomes, no final dos anos 1980. Após mais uma emocionante
apresentação da Orquestra de Câmara de Blumenau, se encontrava no bar muitos
espectadores saídos do espetáculo. Lindolf Bell, sentado numa mesa, de surpresa
se levantou e iniciou uma declamação com tanta energia que o silêncio de imediato imperou:
" O bem te vi
só fala bem te vi....
...de súbito falou circulando devagar entre as pessoas e as mesas
do bar. Com gestos teatrais, mãos e dedos enrijecidos no ar, olhos procurando
os olhos de todos os presentes, voz parecendo querer estilhaçar taças de
cristais, andava, dando impressão de levitar do chão. Lábios tremendo pela
força das palavras, fazia corações disparar numa frequência
descompassada.
Prosseguia:
Na paz da tarde
é bem te vi..
Recitava; ora com voz grave na tonalidade mais alta que
conseguia, ora, apenas sussurros com palavras ditas baixas, pausadas, mas
saídas da sua boca feito cola para grudar na roupa, nos corpos e nas mentes.
Será ator? Ou, quem sabe revolucionário? Guru? Diplomata? Apenas um
artista, certamente responderia abrindo um enorme sorriso a quem o perguntasse. E...
...eu bem o vi
e bem te vejo
entre
lembranças, antigas escritas.
E, para
sempre, por decifrar:
brando,
sonoro, enigma no ar.
Os dias passavam.
Não só de poesia ocupava seu tempo, também nutria paixão pelas artes
plásticas, sendo um destacado marchand dono de uma galeria de arte, a Galeria
Açu Açu. Com ela, estimulava talento dos artistas de Blumenau e de muitos
outros lugares. Um destaque da sua personalidade ficava na importância que
dispensava às pessoas, desde o atendente no bar, no supermercado, nas ruas e todos mais com quem falava. Costumava olhar com tanta energia nos olhos
daqueles que encontrava que fazia parecer dizer: "Acredito em você,
coloque para fora todo talento que possui", representava implorar para
que todos: "Assumam melhores atitudes, o mundo precisa de vocês",
diria, "A cidade precisa de vocês, eu preciso de vocês". Falava isso
apenas com o olhar igual o grito de Munch, expressionista e
solitário. Na verdade, tinha grande capacidade em transmitir energia positiva e
de credibilidade às pessoas.
Ao conhece-lo, conclusão de ser um intelectual estimulador
das melhores relações humanas logo se estabelecia. Seu objetivo principal: o talento, o valor humano,
o refinamento das pessoas, o melhor daquilo que cada um possui. Valorizava o
caráter, a honestidade, a inteligência, o sorriso aberto, a voz segura e a
rizada plena. Por conta dessa exigência de ação, conversar com ele era certeza
de receber enormes conhecimentos, principalmente quando falava sobre a vida, a
arte, os sonhos, nesse caso, as palavras saiam parecendo enciclopédia tamanha
capacidade de atração. Então, percebia-se, ele falava justamente o que sempre
se queria ouvir.
Assim, declamava poesias com alegria onde fosse possível, bastava uma
chance num lugar qualquer, num dia qualquer, numa hora qualquer para isso
acontecer. Podia ser num palco sofisticado de um teatro, numa casa luxuosa, ou
na rua, numa praça, num viaduto, num bar, poderia até ser para uma pessoa, ou
para centenas delas, bastava sentir-se inspirado e, de improviso, realizar um
verdadeiro show proporcionando um belo espetáculo performático. Ao recitar uma palavra
iniciando uma declamação com sua potente voz, logo o silencio se fazia
presente, aí, impunha-se de imediato parecendo estar numa apresentação no
melhor palco do mundo. Atraia olhares com gestos, entonações e palavras ditas
com força igual balas saídas de canhões. Seus versos emocionavam, pareciam punhais cortando
a carne impura, noutros momentos, pareciam melodias amorosas apaixonando o
coração de todos. Públicos diversos o ovacionavam, não importando se mendigos,
andarilhos, serventes modestos, trabalhadores especializados, soldados,
patrões, governadores, sem distinção, todos o ouviam. Empolgado e feliz por
atrair tamanha atenção, recitava com paixão parecendo estar arrancando a faca
do peito, sofria a dor e representava a alegria, entregando a todos o que tinha
de melhor: sua emoção.
"Eu vim da geração das crianças traídas.
Eu vim de um montão de coisas destroçadas...
...Eu inventei um brinquedo das molas de um tanque
enferrujado.
Eu construí uma flor de arame farpado para
levar na
solidão.
Eu desci um balde no poço para salvar
o rosto do
mundo.
Eu nasci conflito para ser
amálgama..."
Declamava e, declamava, sem nunca se cansar.
Ouvindo-o, os dias pareciam melhores, o céu clareava,
crescia a sensação de algo importante acontecendo, algo confortador para
enfrentar os dias com mais serenidade e alegria.
A arte o dominava completamente sua vida, com a galeria de arte, a Açu Açu, promoveu grandes exposições de pinturas e de esculturas, bem
como, lançamentos de livros. Através dela, Blumenau aprendeu apreciar artes
plásticas e conhecer obras de muitos artistas. Promoveu os primeiros leilões de
artes na cidade, lançou muitos artistas e, especialmente, promoveu a minha primeira
exposição individual de pinturas. Também, destaco, foi o primeiro crítico a
publicar um artigo sobre minha obra (abaixo). Ainda, foi
quem me deu condições de executar primeiro mural ao ar livre e foi o grande
estimulador para o, meu, mural "As Costureiras" existir na esquina
das ruas Santa Catarina e Dois de Setembro em Blumenau. Na verdade, fez o que
foi possível para esta obra de 85m2 tornar-se realidade: marcou reuniões na
prefeitura com o, então, prefeito Renato Vianna em 1995 e, para lá me levou
numa tarde para apresentar o projeto e falar com o dirigente municipal.
É preciso que se diga: apoiar artistas jovens era normal para
ele, e, revelar novos talentos era um dos seus principais objetivos. Como
agitador cultural, trabalhava intensamente para aumentar o número de artistas
na cidade, então atendia e dava atenção à todos que o procuravam, isto,
indiferente do segmento cultural, desde literatos escritores à artistas plásticos.
Crítico estimulador da produção artística
Meu primeiro contato com a obra do poeta Lindolf Bell
deu-se através da Televisão no final dos efervescentes anos 1970, quando
declamava poesias no noticiário da extinta TV Coligadas de Blumenau. Acontecia
sempre aos sábados ao meio dia e, de imediato, chamava atenção pela força nas
entonações e nos seus gestos a cada palavra dita firme e clara. Seus versos ecoavam nas casas, ressoavam nas salas, chegavam nas cozinhas e nos corações
das pessoas e, para mim que gostava de ler poesias, suas palavras continuavam
ecoando na semana seguinte. Chamou-me atenção seus gestos tensos com as mãos
próximas do rosto, lembrando ator numa representação dramática numa peça de
teatro.
Blumenau, então um próspero município baseado na força da
indústria têxtil, carecia do aprimoramento e do desenvolvimento artístico
cultural, algo que Lindolf Bell percebeu e assumiu com maestria. Como forma de
participação efetiva nos movimentos artísticos de valorização cultural, fundou a Galeria Açu
Açu para divulgar e comercializar obras de artistas plásticos.
Os concorridos vernissagens que promovia lançando nomes de
artistas (com convites luxuosamente impressos e distribuídos pelo correio para
pessoas da sociedade), ainda hoje são comentados. Também os artigos críticos
publicados na sua coluna de domingo no Jornal de Santa Catarina, onde
apresentava suas opiniões, fazia críticas, divulgava nomes e obras de artistas, algo
que nunca mais voltou acontecer por aqui. Os leilões de artes promovidos por
ele nas principais cidades catarinenses, até mesmo em Curitiba no Paraná,
igualmente merecem destaque por terem sido de enorme contribuição ao
fortalecimento da arte na região. Hoje, maioria das obras das coleções
particulares na região de Blumenau são herança desses leilões.
Incansável, fazia muito mais: costumava comprar obras dos
artistas e sentia-se feliz dando condições de trabalho a muita gente talentosa,
atitude que, seria de grande impulso na carreira de muita gente, inclusive na minha, também nunca mais
foi visto algo parecido acontecendo em Blumenau. Com tantas atribuições, sua
vida era intensa, mas nunca a ponto de cancelar recitais de poesias em escolas,
nem em saídas de fábricas ou nos salões de bailes.
Em 1980, quando promoveu uma grande exposição com obras de Sílvio
Pléticos no teatro Carlos Gomes, pude enfim conhece-lo pessoalmente. Durante o
vernissagem, ele, educadamente, como bom anfitrião cumprimentava todos os
presentes, veio onde eu estava com o amigo Flávio Meirinho (artista plástico
1959-1986). Perguntou nossos nomes e conversou pouco conosco, tempo suficiente para causar-nos impressão
de se tratar de uma pessoa de fortíssima personalidade. A partir desse ano, passei frequentar Galeria Açu-Açu e tive
certeza do meu caminho artístico, na verdade, foi divisor das águas: ter
amizade com Flávio, um dos maiores desenhistas e interessado em pintura que já
conheci, apreciar a exposição do Pléticos e conversar com Bell sobre pintura, então, não tive mais dúvidas, descobri que queria pintar.
Pouco tempo depois, comecei
a participar de exposições coletivas e nunca mais parei, nem de pintar, nem de
expor meu trabalho. Principalmente, a partir dessa época tudo pareceu melhorar,
ora pelos desenhos de encomendas para fábricas têxtil junto com Flávio que rendia boas finanças, ora
pelo estímulo recebido do poeta, ora pelos amigos que fiz no meio artístico,
ora pelas aquisições de obras que periodicamente Bell viria fazer ou, que
intermediava com colecionadores de arte, só me dava certeza de que havia
encontrado minha profissão.
Bell, tinha olhar clínico com a pintura: "trabalha
mais a cor, não tenha medo da cor, coloque mais emoção na pintura, tem que se
esforçar mais, você consegue", dizia-me. Desafiando-me, como fazia com
todos aqueles que o procuravam para mostrar-lhes trabalhos em papel, telas, como
também em metal, pedra, madeira, ou para mostrar-lhes textos e pedirem sua
opinião. Na verdade, desafiava todos com quem tinha contatos e, se sentia feliz vendo mais pintores e escritores surgindo ao seu lado. Assim, eu, com essa sua energia incentivadora ao lado, comecei levar muito
a sério a pintura e, de tempos em tempos apanhava alguns quadros e me dirigia à
sua galeria para mostra-lhes meu progresso. Por isso, imaginem minha alegria
quando, em 1982, disse-me que já estava pronto para a primeira exposição individual.
Naquele dia saí da Galeria Açu Açu com uma alegria tão grande que tinha vontade
de abraçar todas as pessoas na rua. Um ano depois, durante a individual no
Teatro Carlos Gomes, Bell publicou o que seria a primeira matéria crítica sobre
meu trabalho (abaixo), outro momento especial. Nesse dia,
literalmente, sai correndo pela rua pulando com o jornal de domingo na mão,
naquele momento ninguém era mais feliz no mundo do que eu. "Demais, meu
trabalho está numa página de jornal". De verdade, tinha vontade de
gritar isso na rua.
Depois da primeira individual, Lindolf Bell passou a comprar
quase que religiosamente obras minhas. Gostava dos guaches e dos pequenos
óleos, adquirindo-os em quantidade para revende-los nos leilões, até quando
morei em São Paulo, 1987-1988, eu lhe enviava obras para escolher, ele selecionava algumas
e fazia os depósitos.
Em 1991, entre grandes debates sobre artes que aconteciam
rotineiramente na Galeria Açu Açu (ver foto abaixo), quando lá se reuniam artistas e pessoas pensantes de Blumenau (uma das discussões era sobre
necessidade de Blumenau ter uma lei municipal de apoio artístico cultural) e, embalado nesses debates, comecei a falar da minha intenção, sonho, em pintar
murais ao céu aberto, à exemplo dos muralistas mexicanos. Bell, abraçando a
ideia e direcionando-a à poesia, sugeriu fazermos um grande painel-poema na
parede da sua própria galeria. "você com a pintura, eu com a poesia, o
que acha?" Perguntou-me. "Ótimo", respondi, feliz
por me permitir ser referenciado para sempre ao lado da sua importante obra.
Assim fizemos. Parti para o trabalho, ele providenciou o material, escolheu um
pequeno poema (abaixo) e, logo o trabalho, primeiro mural de um saga, estava
pronto para a inauguração. Eu não sabia, mas, naquele dia várias surpresas
ainda me aguardavam. Bell, como sempre, um anfitrião preocupado com o sucesso
do evento, preparou uma festa com som e palco para um recital de poesia. Havia
convidado muitas pessoas, entre as quais, o, então, prefeito Victor Sasse. Este
chegou a pé, chamando muita atenção. Trouxe, como oferecimento, o Bierwagen, o
carro da cerveja, uma camioneta antiga com um simpático velhinho tocando
bandoneon e outro senhor com trajes típicos distribuindo copos de chopp para
quem quisesse. O músico abria e fachava o instrumento, uma visão agradável com trejeitos de artista popular da região. Assim, sugeri ao Bell tirar a música eletrônica e colocar o microfone nele, o único músico tocando ali no momento. Bell, demonstrando mesmo pensamento, foi de imediato providenciar o aparelho para
bem próximo do velho músico. A partir, o som daquele decorado bandoneon passou
a se destacar na algazarra que o chopp havia estimulado. Depois da festa
terminar, veio-me agradecer por destacar o bandoneonista na festa, só então
tomei conhecimento de que seu pai foi um exímio tocador de bandoneon,
justificando assim sua alegria com aquele músico na inauguração do nosso
painel-poema. Até, disse-me, a lembrança do pai tocando o instrumento, com a
família reunida ao redor do fogão à lenha no inverno, é guardada à chave de
ouro no canto esquerdo do peito.
Final dos anos 1980, foi a fase áurea da Galeria Açu Açu, tudo
havia melhorado, até a logomarca havia mudado (coincidentemente, fui eu quem a recriou
quando trabalhava na agência Scriba propaganda), leilões aconteciam
periodicamente, as vendas de obras de arte só aumentavam, direitos autorais de
livros e outros bons rendimentos avistavam-se no horizonte. Ele, animado, havia
mudado sua galeria de arte para um espaço maior onde sempre ficava lotada nos
vernissagens que promovia.
Seu interesse pelas artes plásticas crescia a medida que promovia
novas exposições e leilões de artes. Dessa maneira se permitia manter compras
constantes de novas obras, tanto minhas, quanto de outros artistas.
Sua poesia era o objetivo primordial, as artes plásticas, o
desafio. Fazia muitos amigos no meio artístico, com seu estímulo os artistas trabalhavam
mais e criavam mais. Pintores, poetas, escritores, escultores, produziam e depois se encorajavam mostrar-lhe os resultados. O que acha? Tinham
medo de perguntar-lhe, poderia não gostar. Mesmo assim, nunca desencorajava novos artistas, no fim, parecia implantar desafios para
serem superados pelo talento. "Só resta ao artista, produzir".
Dizia. Então, surgiam novas pinturas, esculturas, poesias e livros pipocando
pelos cantos da cidade.
Incrivelmente, sua importância em estimular a produção da
arte regional ainda não foi inteiramente festejada. Talvez devido nunca ser inteiramente compreendida a influencia
que um artista verdadeiro exerce no seu meio e, sempre, faltará quem consiga mergulhar por inteiro no âmago da sua personalidade e da sua arte. Sempre foi assim, grandes artistas raramente
são reconhecidos em vida, tanto em Blumenau como em qualquer parte do
mundo.
Lindolf Bell era a arte querendo fazer parte da vida, era
um gerador energético explodindo de emoção, era um farol sinalizando a direção,
era alguém gritando que tudo passa pelo coração. Ninguém foi maior ao seu lado.
Como pessoa influente que era, muitos artistas o procuravam.
Escritores querendo sua avaliação em redações, novos pintores na busca do
parecer se tinham ou não talentos, outros querendo vender-lhes obras,
jornalistas, publicitários, moldureiros, etc. Nunca deixou de atender quem o
procurava, mesmo talentos medianos com pretexto de receber impulso na carreira
artística. Indiferente de ser novos escritores ou novos pintores, todos tremiam
diante da sua seriedade e serenidade quando trabalhos avaliava e a sua voz
poderosa era ouvida.
Sua voz, algo a parte, soava com tamanha entonação que de imediato
causava respeito, ou, no caso, direcionava segurança e importância para as
pessoas. Era cortante, era meiga, mas, jamais, desencorajava quem quer que
fosse. Logo, qualquer contato com ele se tornava especial,
sendo que a partir todos que o procuravam tornavam-se seus amigos e, ele demonstrava estar sempre pronto para conversar sobre qualquer assunto, das
alegrias, aos temores e às inseguranças; bastava procura-lo. Um guru? Um papa?
Um super-herói? Talvez. Mas, bastava conversar com ele para
ter certeza de ser apenas alguém simples com coração do tamanho da terra e, a
terra, depende de pessoas iguais a ele para continuar girando e existindo.
Poeta a mais de mil por hora
Para muitos que o conheciam, o dia da morte de
Lindolf Bell foi um dos mais tristes. Provocou comoção naqueles que sabiam da
sua enorme energia radiante e da falta que faria para quem o respeitava, o amava, especialmente, família, amigos e, artistas.
O sol pareceu ficar fraco, terra parou por um segundo, silencio imperou por minutos sem fim até o pensamento absorver triste
realidade. Para artistas plásticos, poetas, escritores, médicos, políticos,
jornalistas, trabalhadores, estudantes, pessoas comuns, principalmente para
àqueles que se acostumaram com sua influência, sua morte trazia a tona uma
pergunta: E, agora? O que será das pessoas? Principalmente, o que será de nós?
Quem mais vai nos estimular? Criticar? Quem mais vai brigar com nós quando
parecermos preguiçosos? Desleixados? Frívolos?
Com sua morte, um sentimento de vazio tomou conta das
pessoas que sabiam o quanto o mundo precisa de homens com a energia e com o coração igual de Lindolf Bell.
Naquele dia triste, eu, como muitos que trabalhavam com
ele, fiquei meio sem rumo, no mesmo momento estava perdendo um bom amigo e um
dos maiores incentivadores do meu trabalho (ver matérias abaixo).
Fui para Timbó onde ele morava. Nem sabendo bem porque, no caminho parei nos bares de beira de estrada, primeiro com intenção de conformar tristeza com vodka e água tônica, mesma bebida que costumávamos beber em noitadas no bar do Teatro Carlos Gomes, como também entrar nos mesmos estabelecimentos que certamente ele entrou muitas vezes quando se dirigia para casa. Na verdade, sabia, quando em vida ele adorava entrar nesses bares, isso desde estabelecimentos conservadores aos nem tanto assim. Humorado, como levava a vida, brincava que os pontos comerciais indicados com luz vermelha eram pitorescos para um senhor burgues frequentar e, também, onde um poeta podia se inspirar sem ter que explicar nada à ninguém. Certamente, buscava novas poesias, histórias, textos perdidos pelos cantos; procurava versos nos olhares das mulheres da noite, nos sorrisos escondidos atrás dos batons, na sensualidade dos movimentos e das danças provocantes. Poesia pura, se entregava à ela.
Fui para Timbó onde ele morava. Nem sabendo bem porque, no caminho parei nos bares de beira de estrada, primeiro com intenção de conformar tristeza com vodka e água tônica, mesma bebida que costumávamos beber em noitadas no bar do Teatro Carlos Gomes, como também entrar nos mesmos estabelecimentos que certamente ele entrou muitas vezes quando se dirigia para casa. Na verdade, sabia, quando em vida ele adorava entrar nesses bares, isso desde estabelecimentos conservadores aos nem tanto assim. Humorado, como levava a vida, brincava que os pontos comerciais indicados com luz vermelha eram pitorescos para um senhor burgues frequentar e, também, onde um poeta podia se inspirar sem ter que explicar nada à ninguém. Certamente, buscava novas poesias, histórias, textos perdidos pelos cantos; procurava versos nos olhares das mulheres da noite, nos sorrisos escondidos atrás dos batons, na sensualidade dos movimentos e das danças provocantes. Poesia pura, se entregava à ela.
Mas, nada de novidades, para ele tudo era poesia.
Transformava a vida em poesia; a fala das pessoas, o andar dos homens, a
esquina da rua, a árvore da infância, os animais, o rio.
Lindolf Bell, parecia cometa a brilhar mostrando a direção,
passou a mais de mil por hora, dava impressão que nunca pararia e era superior
até mesmo da própria morte. Passou tão rápido que não foi inteiramente visto,
continuou sua trajetória de brilho e só parou quando encontrou a constelação
onde estão os maiores poetas da terra e, agora, está lá declamando poesias junto
deles num sarau sem fim.
Passou rápido que nem deu tempo de dizermos o quanto dele
precisávamos, o quanto todas as pessoas do mundo dele precisavam, precisam, só que muitos não sabiam e muitos outros nunca saberão.
Hoje, resta sua poesia, um legado para ser compartilhado
por todas as pessoas, indiferente da nacionalidade ou raça, conhecer Lindolf
Bell é mergulhar na própria alma, é conhecer um pouco mais de si próprio
Passou rápido, mas não tão rápido que não pudesse falar de amor,
da paixão entre as pessoas, falar pelas pessoas, pela natureza e da dádiva da
vida.
Escreveu poemas apaixonantes para serem lidos, declamados,
por todas as pessoas em todos os lugares: Nos pontos de ônibus, nas escolas,
nos hospitais, nos reformatórios, salas das fábricas, nas praias e onde mais
houver pessoas, como ele tão bem gostaria que acontecesse com a sua poesia e a de todos os
poetas.
Mergulhar num poema de Lindolf Bell é entender um pouco mais dos
enigmas do amor, é descobrir um pouco mais sobre amizade, é procurar viver
intensamente e nunca conseguir entender os mistérios da vida.
Recitava suas poesias com paixão e performance igual de um grande
ator de teatro, quem o viu declamar, nunca o esquecerá, também nunca existirá
alguém que conseguirá incorporar tanta paixão nas palavras declamadas
...num dia qualquer...numa hora qualquer...para qualquer pessoa...
Só Lindolf Bell era assim: declamando, queria salvar a dignidade
das pessoas.
Um final de tarde na Galeria Açu-Açu em 1981..
Aqui, com Lindolf Bell, Leila (?) e
Rubens Oestroem. Na foto, chama atenção a mesma cor dos calçados dos homens (não foi
combinado) e minha saudosa camiseta da série "Impacto social", na qual se lia: "Cuidado: Bois. Coitados".
Com Lindolf Bell em frente ao Painel-poema (600x900cm), em 1991.
Dedicatória de Lindolf Bell no livro O Código das Águas, em 1984,
ano de uma das maiores enchentes do Rio Itajaí-Açu em Blumenau.
ano de uma das maiores enchentes do Rio Itajaí-Açu em Blumenau.
Artigos publicados por Lindolf Bell
Os três artigos, reproduzidos a seguir, foram
publicados por Lindolf Bell. Neles podemos conhecer um pouco
mais sobre meu trabalho e da sua poetizada redação, bem como, um pouco mais de uma
época próxima passada.
Artigo 1
Publicado em: Jornal de Santa Catarina (Blumenau), 20 de março de 1983
Cesar Otacílio: Vigor e inquietação
Lindolf Bell
A exposição de Cesar
Otacílio, aberta sexta-feira, no Teatro Carlos Gomes, está recebendo visitação compacta e
atenta. Trata-se na verdade, da primeira individual de um artista jovem,
inaugurando o calendário de individuais da Galeria Açu-Açu e Teatro Carlos Gomes,
em 1983. Com apoio do Jornal de Santa Catarina, Coca-Cola, TV Coligadas e Departamento de Cultuara da Prefeitura, a mostra pode ser vista até o final de março, das 10:00 às 22:00 horas.
Uma exposição imprescindível
para entender a inquietação criativa da cidade, onde as linguagens se multiplicam numa proposta cada vez mais aberta e
menos preconceituosa.
Há mais de dois anos Cesar Otacílio entra e sai na Galeria
Açu-Açu. Nos horários mais imprevistos. E desenvolvendo seu trabalho previsível
desde o princípio, desde o primeiro, quando foram perceptíveis o vigor e a
energia no traço e na cor.
Esta energia criativa, carecendo de uma disciplina que a
transformasse em forma plástica, estruturou-se aos poucos. Conversas em
exposições, leitura de livros, indagações e respostas, e, um trabalho
permanente, de rara convicção, amadureceram Cesar Otacílio para a primeira
individual.
Não deixa de ser comovente. Sobretudo, não deixa de ser
compensador. O tempo inteiro de nosso conhecimento, tratou-se de um ato de
mútua confiança, onde inúmeras vezes o constrangimento alternou-se com a
emoção, diante do visível crescimento do artista.
Em verdade, depois de Guido Heuer, Reynaldo Pfau e Rubens Oestroem
(hoje na Alemanha), raras vezes tenho visto confiança tão acentuada no próprio
talento.
Aqui a certeza de estar no caminho exato, onde solidão e
necessidade de comunicar-se resumem um signo e uma aventura de um artista
jovem, com todos os requisitos que podem fazer dele um vencedor.
II
A arte geométrica (cubista?) tem artistas poderosos em sua
proposta. Mas esta tendência contemporânea estaria exaurida? Não! Como nenhuma
proposta esgotou-se. Esgotaram-se artistas. A capacidade renovadora das
linguagens faz parte do destino intrínseco da arte. E este destino não pode ser
esmagado, por inteiro, por todo tempo, por nenhum tipo de policiamento quer
estático, moral ou político.
O que há de novo numa pintura geométrica que surge em Blumenau?
Há quinze anos Ele Hering mostrava seus estudos na Alemanha, onde celebrava-se
klee, kandisnsky e outros, numa visão pessoal, sob o olhar de espanto da
cidade.
O que há de novo em Otacílio Gomes, buscando inspiração nos
recursos formais cubistas, transparece numa mensagem icônica forte, que
sintetiza uma "leitura" blumenauense-brasileira e um possível
geometrismo, onde a temática são pássaros, homens, mulheres, animais, vegetais
de uma brasilidade do Vale do Itajaí ainda por inventariar, a partir de
ângulos, visões, revisões, enfim, novas concepções plásticas que se
contraponham às eternas redundâncias.
A rigidez formal do cubismo de Cesar Otacílio, não consegue
esconder um substrato emocional, uma expressão onde a melancolia se
transparece, convive com irreverência no visto de soldados, pássaros e animais.
Artigo 2
Publicado em: Jornal de Santa Catarina (Blumenau), 18 de dezembro de 1986
A expressão, o enigma: Cesar Otacílio
Lindolf Bell
Lindolf Bell
Todo artista vive um destino de caracol.
Carrega consigo a casa: solidão, circunstâncias,
inquietação.
O resto conjuga-se com o verbo amadurecer.
Cada fruto no tempo certo, cada obra à expressão própria.
No entanto, nunca deixa de ser reconhecível.
Árvore da criatividade, a verdade pessoal passa uma sombra
inconfundível, independentemente de tema, técnica, suporte.
Transparece, vigora, defende, a fundo, a própria
natureza que todo artista procura preservar.
Cesar Otacílio inscreve-se nesta categoria da
resistência.
Onde cabe a difícil tarefa de não entregar-se a
modismos. Onde defende o próprio trabalho de acordo com a sua maneira de ver o
mundo. E isto há vários anos, antes do expressionismo abstrato, figurativo e
geométrico, tomar de assalto exposições, galerias, museus, como o caminho mais
atual na arte contemporânea ocidental.
Temas surgem, ressurgem.
A figura humana (soldados, músicos, tomadores de
sopa, costureiras), numa sequência de tipos incomuns na pintura brasileira, se
alterna com animais (vacas, cavalos), herança no interior do Vale do
Itajaí.
A deformação em Cesar Otacílio atinge o limite
sutil de uma leitura não convencional, mas não elimina a intimidade com a superfície visível, provocando a comunicação pelo tênue fio da deformação sob controle.
Expressa muito do que se esconde, refletindo em cenas solitárias, onde a beleza assume a face não da serenidade, mas da atrevida experimentação das máscaras, do embaraço, do susto dos hóspedes de corpos e rostos em experiencias alternativas.
Expressa muito do que se esconde, refletindo em cenas solitárias, onde a beleza assume a face não da serenidade, mas da atrevida experimentação das máscaras, do embaraço, do susto dos hóspedes de corpos e rostos em experiencias alternativas.
Um lado incerto da natureza, nem sempre
dizível.
Ali Cesar Otacílio joga com a angústia, o espanto,
o enigma.
Artigo 3
Publicado em: Jornal: A Notícia (Joinville), 23 de maio de 1993
Artista e cidadão, uma mesma temática
Lindolf Bell
Não é de hoje o fascínio de Cesar Otacílio pela
figura. Não como tema de cópia fotográfica na plasticidade, mas como conjunto
de formas palpitantes debaixo da superfície do corpo.
O artista nasceu no Alto Vale do Itajaí, vive em
Blumenau, um espaço cultural capaz de incorporar, ampliar, refazer, revelar uma
propícia e permanente atividade criativa. A duras penas muitas vezes, muitas
vezes no limiar da pobreza e da falta de apoio absolutos.
Passam as águas do Rio Itajaí-Açu.
Cesar Otacílio pinta um painel na cabeceira da
ponte da estrada-de-ferro (quem se lembra?).
Passa história,
passa a memória, o artista inscreve em parede
pública (um presente à cidade e quem percebeu este afeto?) o primeiro
painel-poema do pais.
Passam e se renovam dirigentes da cultura,
Otacílio permanece em sua luta solitária, escrevendo manifestos quando a classe
toda se vê jogada nas latas de lixo da desinformação de uma fatia da burguesia,
incapaz de enxergar um palmo além do fascínio pelas aparências e o dinheiro que
fatura às custas de artistas-criadores e outras classes de cidadãos menos
privilegiados.
Independente desta posição ideológica, onde a
dignidade encontra lugar no dia-a-dia, o lado sensível permanece em sintonia
com a necessidade intrínseca de expressar-se. E se o ser humano é peso e medida
de sua batalha como cidadão, a figura permanece matéria vital de sua arte. Essa
consagração numa obra tão jovem quanto eficiente, reaparece (depois dos óleos,
acrílicos, tintas de automóveis) com uma nova série de aquarelas. Inicialmente
mostradas no Espaço de Arte Açu-Açu (1992), foram também apresentadas na
Fundação Frei Godofredo de Gaspar, ao lado de outras técnicas com diferentes
temáticas, entre as quais animais, naturezas mortas e objetos de uso diário.
Simultaneamente as figuras são
construídas com linhas plenas de alterações. Deformações que não eliminam suas
características básicas, mas se completam com expressões da solidão, da ironia,
do espanto, do impulso da vida que transparece muitas vezes melancólico,
paradoxalmente fortes e desamparadas, subjetivas e inquietas, rebeldes na
harmonia da composição.
Nas manchas, pontos, linhas,
insinua-se a insegurança não da estética pessoal de Cesar Otacílio, mas das
figuras revistas (adolescentes, operários de fábrica, músicos, soldados), que
fazem parte deste tempo e desta cidade e deste país de pindorama, onde nem tudo
é justo e perfeito. Se fosse, afinal de contas, para que serviriam os artistas
e seus olhos abertos para as diferenças indesejáveis, numa sociedade que tantas
vezes se assemelha a um aglomerado de avestruzes com a cabeça, vaidosamente,
enfiada na areia?